Jornal Médico - Vantagens e desvantagens da discriminação positiva

Os novos utentes e fam&iacute;lias aceites em listas de m&eacute;dicos de fam&iacute;lia nos centros de sa&uacute;de portugueses s&atilde;o, desde sempre, admitidos por ordem cronol&oacute;gica de inscri&ccedil;&atilde;o. Uma metodologia que acabou por ser incorporado nas novas unidades funcionais dos agrupamentos de centros de sa&uacute;de, em particular nas unidades de sa&uacute;de familiar. Os novos utentes e fam&iacute;lias aceites em listas de m&eacute;dicos de fam&iacute;lia nos centros de sa&uacute;de portugueses s&atilde;o, desde sempre, admitidos por ordem cronol&oacute;gica de inscri&ccedil;&atilde;o. Uma metodologia que acabou por ser incorporado nas novas unidades funcionais dos agrupamentos de centros de sa&uacute;de, em particular nas unidades de sa&uacute;de familiar. Por&eacute;m, tornou-se evidente, ao longo dos anos, a emerg&ecirc;ncia de se repensar o modelo, introduzindo o princ&iacute;pio da discrimina&ccedil;&atilde;o positiva na admiss&atilde;o de novos utentes, concedendo prioridade &agrave;queles com maior risco potencial de sa&uacute;de ou com exig&ecirc;ncias especiais de vigil&acirc;ncia. M&eacute;dico de Fam&iacute;lia foi ouvir a opini&atilde;o de quem se confronta, todos os dias, com esta complicada l&oacute;gica de selec&ccedil;&atilde;o e descobriu que nesta mat&eacute;ria o consenso est&aacute; longe de ser uma realidade Como se sentiria um utente que, ap&oacute;s tr&ecirc;s anos de espera para entrar nas listas de uma unidade de sa&uacute;de familiar (USF), se visse de repente ultrapassado por um idoso diab&eacute;tico, com acentuadas necessidades de vigil&acirc;ncia, em lista de espera h&aacute; apenas uma semana? A quest&atilde;o &eacute; leg&iacute;tima e &ndash; com um ou outro acerto de circunst&acirc;ncia &ndash; j&aacute; se ter&aacute; colocado em muitas unidades dos cuidados da sa&uacute;de prim&aacute;rios (CSP) portugueses. Entronca, de forma directa, no seguinte dilema: cabe &agrave; sociedade garantir todas as condi&ccedil;&otilde;es para que os mais fragilizados &ndash; ou aqueles que denotam maior risco de entrar nessa categoria &ndash; sejam assistidos com prioridade, ou deve este direito ser assegurado a todos, independentemente do seu estado de sa&uacute;de? Ou dito de outro modo: deve o princ&iacute;pio &ldquo;quem primeiro chega, primeiro acede&rdquo; eternizar-se? Jos&eacute; Miguel Fragoeiro, dirigente da equipa nacional da Miss&atilde;o para os Cuidados de Sa&uacute;de Prim&aacute;rios (MCSP) com responsabilidades na &aacute;rea jur&iacute;dica e de enquadramento legal, explicou ao nosso jornal que a legisla&ccedil;&atilde;o criada no &acirc;mbito das USF &ldquo;n&atilde;o faz refer&ecirc;ncia a grupos vulner&aacute;veis ou de risco, em termos de inclus&atilde;o em lista. O que a lei diz &eacute; que deve ser dada prioridade &agrave; implementa&ccedil;&atilde;o das USF que aumentam a capacidade de cobertura, integrando utentes sem m&eacute;dico de fam&iacute;lia atribu&iacute;do&rdquo;. No entanto, garante Fragoeiro, a lei geral consagra direitos a grupos mais vulner&aacute;veis, no atendimento e acolhimento privilegiados em servi&ccedil;os p&uacute;blicos. A este respeito, o jurista da MCSP invoca o diploma sobre a moderniza&ccedil;&atilde;o administrativa &ndash; Decreto-Lei (DL) n&ordm; 135/99, de 22 de Abril. Neste diploma, determina-se, no artigo 9&ordm;, n&ordm; 1, que ao n&iacute;vel dos servi&ccedil;os p&uacute;blicos &ldquo;deve ser dada prioridade ao atendimento dos idosos, doentes, gr&aacute;vidas, pessoas com defi-ci&ecirc;ncia ou acompanhadas de crian&ccedil;as de colo e outros casos espec&iacute;ficos com necessidades de atendimento priorit&aacute;rio&rdquo;. &Agrave; luz desta norma, &eacute; poss&iacute;vel dizer que os grupos vulner&aacute;veis ter&atilde;o direitos preferenciais no atendimento e acolhimento. Todavia, n&atilde;o &eacute; l&iacute;quido que tais prerrogativas sejam extens&iacute;veis ao acesso a listas das unidades funcionais dos centros de sa&uacute;de. A quest&atilde;o, aqui, reside na interpreta&ccedil;&atilde;o (mais ou menos lata) que se faz do enunciado &ldquo;atendimento e acolhimento&rdquo;. Caso se integre, no mesmo, a admiss&atilde;o de novos utentes em lista, ent&atilde;o &eacute; natural aceitar a discrimina&ccedil;&atilde;o positiva como um procedimento correcto. Fragoeiro rebate a ideia, defendida por alguns, de que a discrimina&ccedil;&atilde;o positiva nestes casos possa violar a Constitui&ccedil;&atilde;o, por um lado, e o argumento de que as imposi&ccedil;&otilde;es legais nesta mat&eacute;ria n&atilde;o s&atilde;o aplic&aacute;veis em unidades de sa&uacute;de, com base em dois argumentos: &ldquo;se assim fosse, o DL da moderniza&ccedil;&atilde;o administrativa que prev&ecirc; tal tratamento preferencial seria, ele pr&oacute;prio, inconstitucional (e n&atilde;o &eacute;). Por outro lado, embora as USF, os centros de sa&uacute;de e os hospitais n&atilde;o disponham de um comando normativo nesta &aacute;rea &ndash; nas leis especiais que os regulamentam &ndash; n&atilde;o deixam de ser servi&ccedil;os p&uacute;blicos. O que significa que est&atilde;o obrigados a respeitar as mesmas regras de atendimento em vigor nas escolas, ou nas reparti&ccedil;&otilde;es de finan&ccedil;as, por exemplo&rdquo;. Em acr&eacute;scimo, Jos&eacute; Miguel Fragoeiro relembra que o artigo 64&ordm; da Constitui&ccedil;&atilde;o Portuguesa (que fixa o direito &agrave; Sa&uacute;de) &ldquo;n&atilde;o impede qualquer discrimina&ccedil;&atilde;o positiva para grupos vulner&aacute;veis&rdquo;. Assim, na sua perspectiva &ldquo;pode verificar-se tal procedimento, se a lei ordin&aacute;ria assim o fixar&rdquo;. Protec&ccedil;&atilde;o de utentes vulner&aacute;veis pode descambar em injusti&ccedil;as&hellip; Jos&eacute; Manuel Madeira, m&eacute;dico na USF Mirante (Olh&atilde;o), cr&ecirc; que a introdu&ccedil;&atilde;o de uma avalia&ccedil;&atilde;o cl&iacute;nica das vulnerabilidades do doente, no processo de incorpora&ccedil;&atilde;o em lista, pode ser uma sa&iacute;da leg&iacute;tima: &ldquo;&eacute; um crit&eacute;rio, como poder&atilde;o existir outros. No nosso caso particular, temos tentado dar resposta aos utentes vulner&aacute;veis sem MF atrav&eacute;s de carteiras adicionais&rdquo;. J&aacute; C&acirc;ndida Palmeir&atilde;o, coordenadora da USF Ramalde, considera complicado que os servi&ccedil;os de sa&uacute;de adoptem uma abordagem favor&aacute;vel aos grupos vulner&aacute;veis: &ldquo;cada unidade ter&aacute; de fazer as suas op&ccedil;&otilde;es, mas &eacute; dif&iacute;cil. Imagine- -se que um utente (em princ&iacute;pio saud&aacute;vel) vem residir na zona abarcada pela nossa unidade e que ap&oacute;s um m&ecirc;s &eacute; preterido a favor de algu&eacute;m que acabou de se inscrever. N&atilde;o me parece uma solu&ccedil;&atilde;o muito l&oacute;gica, ou f&aacute;cil. Poderia sempre surgir a hip&oacute;tese de as pessoas se questionarem sobre quem tem prefer&ecirc;ncia. Uma gr&aacute;vida? Um idoso? Algu&eacute;m que parece saud&aacute;vel pode, passadas algumas semanas, ver detectado um problema de sa&uacute;de cr&oacute;nico!&rdquo;. Na USF Alto da Maia, a sensibilidade face aos casos vulner&aacute;veis &eacute; evidente. &ldquo;Quando nos surgem situa&ccedil;&otilde;es que exigem aten&ccedil;&atilde;o imediata, at&eacute; acabamos por inscrever os utentes, mesmo quando as listas dos m&eacute;dicos est&atilde;o, teoricamente, completas. Falamos aqui de situa&ccedil;&otilde;es espec&iacute;ficas, que constituem verdadeiros problemas sociais, as quais merecem a entrada directa na lista de qualquer um dos oito m&eacute;dicos&rdquo;, explica Fernando Filgueiras, coordenador daquela unidade. Sempre que surgem vagas nas listas dos m&eacute;dicos, a Alto da Maia acaba tamb&eacute;m por dar prefer&ecirc;ncia a quem mais necessita e coloca um pouco &agrave; margem os ju&iacute;zos cronol&oacute;gicos, como refere Fernando Filgueiras: &ldquo;perante duas fam&iacute;lias, a primeira saud&aacute;vel e a segunda com necessidades prementes de cuidados m&eacute;dicos e de enfermagem, obviamente que damos prioridade &agrave; fam&iacute;lia com riscos acrescidos. Um exemplo: pessoas idosas, sem apoio no domic&iacute;lio, ter&atilde;o sempre preced&ecirc;ncia face a um casal jovem&rdquo;. Direitos iguais para todos&hellip; Tem sentido? Miguel Mesquita, coordenador da USF Cruz de Celas, n&atilde;o se depara com o dilema de escolher entre fam&iacute;lias que aguardam inscri&ccedil;&atilde;o, j&aacute; que no centro de Coimbra os utentes sem MF s&atilde;o praticamente inexistentes. O universo de cobertura proposto pela Cruz de Celas tamb&eacute;m j&aacute; foi atingido. De qualquer modo, quando reflecte sobre um cen&aacute;rio hipot&eacute;tico, com centenas de pessoas a baterem-lhe &agrave; porta em busca de apoio cl&iacute;nico, Miguel Mesquita confessa que teria d&uacute;vidas no momento da escolha: &ldquo;sentiria grande dificuldade em seleccionar utentes para inscrever. De facto, mesmo dentro dos grupos vulner&aacute;veis seria necess&aacute;rio definir um conjunto de graus de prioridade. A quem dar&iacute;amos prefer&ecirc;ncia? Aos idosos em geral, aos idosos com polipatologia, &agrave;s gr&aacute;vidas? Nada me garante que conceder privil&eacute;gios aos idosos, por exemplo, em compara&ccedil;&atilde;o com outros grupos populacionais, resultaria num processo de equidade&hellip;&rdquo;. A coordenadora da USF Villa Longa, Manuela Victor, v&ecirc; como fundamental a manuten&ccedil;&atilde;o do car&aacute;cter igualit&aacute;rio de todos os utilizadores dos servi&ccedil;os de sa&uacute;de: &ldquo;todos os utentes t&ecirc;m os mesmos direitos e portanto a inclus&atilde;o em lista deve fazer-se por ordem de chegada. Neste momento, temos em Vialonga uma lista de residentes que aguardam para entrar na USF, ordenada de acordo com esse crit&eacute;rio&rdquo;. O que a equipa da Villa Longa tem vindo a fazer &eacute; avaliar pedidos expressos vindos de utentes de risco elevado, ou com necessidades especiais, que j&aacute; t&ecirc;m familiares inscritos na USF. Se o utente em quest&atilde;o n&atilde;o possuir familiares inscritos, ent&atilde;o ter&aacute; de esperar a sua vez, como os demais. Miquelina Redondo, coordenadora da USF Sem Fronteiras, entende que &ldquo;pode tornar- -se injusta uma escolha centrada em supostas discrimina&ccedil;&otilde;es positivas. Corremos o risco de encontrar uma fam&iacute;lia em que tudo parece estar bem, na qual todos os membros s&atilde;o aparentemente saud&aacute;veis, mas em que venhamos a identificar, mais tarde, uma doen&ccedil;a cardiovascular n&atilde;o diagnosticada. &Eacute; sempre um pouco delicado tomar este tipo de decis&otilde;es, com base em diagn&oacute;sticos que existem ou que permanecem por fazer&rdquo;. V&iacute;tor Ramos, m&eacute;dico da USF Marginal defende que &ldquo;os que mais necessitam devem ter prioridade&rdquo;, mas que de qualquer forma as pr&aacute;ticas de discrimina&ccedil;&atilde;o positiva podem ser dispensadas, se o Minist&eacute;rio da Sa&uacute;de se empenhar em apurar o registo central de utentes. Tal libertaria, sem d&uacute;vida, o n&uacute;mero suficiente de vagas nas unidades funcionais para a inclus&atilde;o de todos os cidad&atilde;os que ainda se encontram do lado de fora. &ldquo;Se mantivermos actualizado o relacionamento que cada cidad&atilde;o pretende manter com o SNS, assim como as movimenta&ccedil;&otilde;es da popula&ccedil;&atilde;o migrante, teremos parte importante do problema resolvido&rdquo;, assegura o m&eacute;dico da USF Marginal.

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