O Orçamento do Estado de 2011 para a Saúde foi classificado como “irrealizável” por um painel de especialistas reunidos recentemente numa conferência organizada pelo Centro Hospitalar de Lisboa Norte. Médicos e economistas consideram que é impossível reduzir a despesa. O assunto, já de si polémico, conduziu a algumas sugestões controversas, com o economista Pitta Barros a apontar que os centros de saúde deveriam começar a pagar por cada doente que acorra a uma urgência de um hospital sem necessidade... O Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN), os seis centros de saúde da unidade setentrional (Alvalade, Benfica, Loures, Lumiar, Odivelas e Pontinha) e a Faculdade de Medicina de Lisboa, promoveram, há dias, uma sessão pública de debate sobre a situação financeira da saúde. A sessão contou com intervenções de Adalberto Campos Fernandes (ex-presidente do CHLN e docente da Escola Nacional de Saúde Pública), Eugénio Rosa (economista), João Álvaro Correia da Cunha (actual presidente do conselho de administração do CHLN), José Fernandes e Fernandes (director da Faculdade de Medicina de Lisboa), Pedro Pitta Barros (economista) e de João Pereira (professor da Escola Nacional de Saúde Pública), que presidiu a sessão. Profissionais de saúde e economistas defenderam ser impossível conter e fazer previsões exactas da despesa do sector em virtude das novidades tecnológicas e dos fármacos inovadores que, todos os anos, são introduzidos no mercado. Financiamento do SNS é também uma questão política De acordo com Pitta Barros, a sustentabilidade é um conceito que “está de moda” mas em redor do qual coexistem uma série de mitos e preconceitos. A questão, ao nível da Saúde, coloca-se porque existe um forte crescimento da despesa, associado a um não crescimento da economia. “Temos que definir o que queremos pagar e pensar onde vamos buscar o dinheiro. Não faz sentido definir um tecto em função do PIB”, afirmou. A questão do financiamento do SNS “não pode ser desligada do financiamento, em geral, de todas as outras actividades do Estado, como por exemplo a Educação, o maior ministério do país”. Quando há um “aperto” da despesa pública, afecta todos os sectores. Isso significa que “parte do problema do financiamento do SNS é também um problema político, de escolha de como utilizar os fundos públicos”. Pensar a Saúde a longo prazo Na opinião do economista, “se queremos pensar em sustentabilidade financeira do SNS não podemos limitar-nos a medidas de curto prazo, mas de médio e longo prazo”. A discussão em torno dos gastos da saúde anuais “é pouco relevante para a questão da sustentabilidade”. O que interessa são as taxas de crescimento e a sua evolução ao longo do tempo. “Tomar medidas que baixem o nível da prestação, hoje, mas que vão aumentar a despesa no futuro, acaba por criar défices de sustentabilidade”. É pois necessário “pensar de forma diferente”, defende. Contrariando a visão de que uma das formas de garantir a sustentabilidade financeira do SNS passa por “ganhar eficiência”, Pitta Barros refere que este é um efeito estático: “ganhar eficiência é bom em cada momento, uma vez que não podemos desperdiçar recursos, mas não resolve o problema a médio e longo prazo”. Ou seja, “gerir bem é uma condição necessária mas não suficiente porque há outros factores que fazem crescer as despesas em saúde. Eficiência dinâmica implica o controlo das taxas de crescimento”, reforça. Daí que o fundamental será “começar a pensar como alterar essa dinâmica”. Há risco de as previsões não se concretizarem A sustentabilidade financeira do SNS está ligada, em primeiro lugar, ao crescimento da economia e, depois, à redução das outras despesas públicas. Nesse sentido, o professor de Economia da Universidade Nova de Lisboa considera que a verba prevista para a Saúde no Orçamento do Estado (OE) para 2011 é “irrealizável”. O OE prevê uma redução de quase 13% das verbas, o que se traduz em mais de mil milhões de euros. “Olhando para o Orçamento, é possível acreditar que vamos ter uma despesa de menos 12,8%?”, questiona. Além da possibilidade do orçamento não se concretizar, Pitta Barros aponta o risco de os hospitais voltarem a ter dois orçamentos, como sucedia há anos atrás: um orçamento oficial e um orçamento real, 20 a 30% mais alto que o primeiro. “Se isso acontecer, a responsabilização da gestão praticamente desaparece”. Da mesma maneira, o economista critica o facto de, nos últimos anos, os hospitais com boa gestão terem tido “como prémio”… Receberem menos verbas no orçamento seguinte. As consequências da síndroma do Robin dos Bosques – tirar ao rico, que geriu bem, para dar ao pobre, que geriu mal – geram “um círculo vicioso” que conduz a um crescimento descontrolado da despesa, alerta. Então, como controlar o crescimento da despesa a longo prazo? “Investindo na promoção da saúde das pessoas”, diz o economista, aproveitando para desfazer outro mito: “o envelhecimento representa uma fatia muito pequena da despesa em saúde. O que causa o aumento da despesa em saúde são as novas tecnologias… nomeadamente, os medicamentos”. Sugestão de que os CS paguem pelas falsas urgências gera polémica Já na fase de discussão destas ideias, o economista, inquirido sobre a necessidade da promoção da saúde como um caminho a longo prazo que requer ajustes no sistema de saúde, deixou a sugestão de que, para diminuir o recurso excessivo às urgências em detrimento dos cuidados de saúde primários, sejam os centros de saúde a pagar por cada doente que ocorra ao hospital sem necessidade. “Penso que se deve educar a população e articular melhor os níveis de cuidados. Como economista, penso que a situação que existe hoje é um claro reflexo de não se saber utilizar os mecanismos adequados para guiar as pessoas”, apontou. Nesse sentido, avançou com a sugestão de os centros de saúde começarem a pagar pelas urgências “verdes” e “azuis”. Esta proposta gerou controvérsia junto dos profissionais dos cuidados de saúde primários, que dizem nem sequer ter, por vezes, os meios necessários para actuar junto dos seus utentes. Outros especialistas presentes recomendaram mesmo “prudência”, pois em tempos de crise pode correr-se o risco de abrir uma “Caixa de Pandora de difícil solução...”. Governo inglês é apontado como exemplo “Cabeça fria, cultura de consenso e não nos deixarmos cair em extremos”, é a recomendação de Adalberto Fernandes para os tempos actuais. “Não podemos esquecer que estamos a falar de, talvez, o activo social mais relevante, que é a saúde de todos nós”. Nessa medida, o antigo presidente do conselho de administração do CHLN (Hospital de Santa Maria e Hospital Pulido Valente), defende: “quando falamos sobre política e aspectos do controlo da despesa, a questão do acesso e da equidade não pode ser, em nenhum momento, esquecida”. O SNS é “uma fronteira de protecção e de segurança, sobretudo para as pessoas que mais precisam”, referiu o também professor da Escola Nacional de Saúde Pública, condenando o corte das verbas na Saúde e dando como exemplo o governo inglês, que deixou este sector imune às reduções gerais introduzidas no orçamento. Críticas aos arautos da desgraça O médico aponta que, em Portugal, a degradação da situação económica e financeira tem vindo, sem dúvida, a contribuir para uma diminuição da confiança dos cidadãos no Estado e nos agentes políticos. “Uma das consequências mais negativas deste processo tem sido o avolumar de um sentimento de descrença em relação à administração pública. Neste contexto, parece emergir um elevado grau de frustração dos cidadãos, face à percepção do binómio custo-qualidade na generalidade dos serviços públicos”. O sistema de saúde não tem ficado imune “a esta percepção de ineficiência e défice de qualidade”. Por isso mesmo, impõe-se “a introdução de medidas, de carácter reformista, que promovam os valores da eficiência e da qualidade e que sejam capazes de repor a confiança dos cidadãos”. Adalberto Fernandes critica, por outro lado, “os arautos da desgraça” que, em tempo de crise, aparecem normalmente com discursos contra o Estado, as instituições públicas e o Sistema Nacional de Saúde, propondo antes “soluções fáceis de mercado”. Não é apenas Portugal que se encontra em dificuldades, adianta. “Há cerca de seis meses, na Alemanha, a única economia da Europa que está a crescer com algum vigor, a chanceler Angela Merkel foi obrigada a ir buscar ao cofre seis mil milhões de euros para compensar o buraco das contas públicas na Saúde. Não há, portanto, reformas de PowerPoint, soluções mágicas, nem milagres em gestão e saúde”. Custos da ineficiência situam-se entre 15 e 25% Adalberto Fernandes concorda que o sistema de saúde é muito vulnerável à inovação, sublinhando que “a despesa em saúde não vai parar de crescer” e que o financiamento via IRS já não é suficiente. A suborçamentação e a falta de transparência do Ministério da Saúde em não revelar as dívidas totais e os resultados reais da gestão das unidades de saúde, foram também alvo das críticas do médico. “Quando não há transparência, o que acontece é o boato, a dúvida e a injustiça”, afirma. O gestor apontou também o dedo a alguns inconvenientes das parcerias público-privadas, afirmando que os médicos deveriam trabalhar de forma mais exclusiva para o Serviço Nacional de Saúde. Mas ressalvou que nenhuma reforma pode ser bem sucedida se for feita contra os profissionais, pelo que reafirmou a importância de se introduzirem mecanismos de avaliação do desempenho que valorizem o mérito. Essencialmente, Adalberto Fernandes defende a implementação de mecanismos de gestão mais flexíveis, capazes de aprofundar uma cultura descentralizada de gestão orientada para o controlo de custos e a promoção da qualidade, “conjugando produtividade, com flexibilidade” e, sobretudo, “responsabilização pela efectividade dos resultados”.