Jornal Médico - Nuno Jacinto: Manter o que há de bom no SNS e “fazê-lo evoluir”

O presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF) faz uma apreciação ao Encontro deste ano, que procurou abordar a evolução da especialidade ao longo destas quatro décadas, e assim, se saldou num “momento de celebração”. Em conversa com o Jornal Médico, Nuno Jacinto recorda os princípios basilares da Medicina centrada no utente e fala na aposta na carreira médica, em Portugal, no momento crítico quanto à contratação de novos profissionais. Saiba mais na edição 141 do Jornal Médico. Jornal Médico (JM) | Responderam ao apelo da APMGF mais de mil pessoas que se inscreveram no 40.º Encontro da APMGF, demonstrativo da vitalidade da especialidade. No entanto, como manifestou o presidente honorário da APMGF, Mário Moura, nas palavras que dirigiu à audiência aquando do momento de encerramento, esta feliz ocasião não ofusca a situação difícil que a MGF e o SNS atravessam. Porém, a APMGF, por si dirigida, tem mostrado uma posição bastante firme face à denúncia do número de utentes que continua sem médico de família. Que postura e propostas foram partilhadas neste Encontro? Nuno Jacinto (NJ) | Relativamente a este assunto, a postura é de grande preocupação. Aliás, tem sido essa a nossa posição pública nos últimos anos. De facto, o número de utentes sem médico de família atribuído continua a aumentar. Tem havido cada vez mais dificuldade em ter um número suficiente de especialistas em MGF no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Isso é algo que tem vindo a preocupar a APMGF. Temos tido algumas propostas de soluções que, na realidade, não o são. Recordo o que aconteceu no ano passado com a lei do orçamento de Estado, em que basicamente se pretendia substituir os médicos de família por outros médicos, e, felizmente, foi possível reverter essa ideia. Porém, não existem ainda medidas e propostas concretas que permitam um olhar para o futuro com mais confiança e com a ideia de que poderemos ter novamente médicos de família, em número significativo, a serem atraídos para o SNS. O diagnóstico está feito e as propostas já são bem conhecidas. Insistimos na necessidade de valorizar e respeitar o trabalho dos médicos de família, este é o nosso ponto essencial e isso não tem acontecido nos últimos tempos, sobretudo durante e após a pandemia, e isso faz-se com várias soluções, nenhuma delas com efeitos, obviamente imediatos, mas passa por modificar a questão das remunerações, atualizando aquilo que é o perfil remuneratório dos CSP, das USF A e as USF B; investir numa carreira verdadeira e séria, baseada no mérito; diminuir a burocracia; ajustar a dimensão das listas de utentes; dar real autonomia e flexibilidade quer às Unidades quer aos próprios profissionais para melhor conciliarem a sua atividade com aquilo que é a prática clínica e aquilo que são outras atividades que tenham fora, nomeadamente, investigação, docência ou a própria vida familiar. Além disso, importa assegurar as adequadas condições técnicas e físicas das instalações, dos equipamentos e dos sistemas de informação. É inegável que vivemos um momento difícil, que se degrada cada vez mais e assim não pode continuar. JM | Em declarações recentes, o Dr. Nuno Jacinto manifestou que o Ministério da Saúde deveria ter como política contratar todos os colegas de MGF e não colocar as expectativas “por baixo”. Contudo, apontou ainda que para reverter o problema dos recursos humanos há questões de carreira médica (remuneração, horários, burocracias) que urge resolver. Do ponto de vista da APMGF para tentar reverter a situação a médio prazo, por onde se deve começar? NJ | Considero que o principal ponto é ouvir os colegas e perceber o que é que os leva, ou não, a ficar no SNS e que motivos os leva a sair. Claro que podemos sempre olhar para isto de duas formas, se há 30% ou 40% que saem, há 60% ou 70% que ficam, pelo menos numa fase inicial. O ideal é estarmos perto dos 100%, por isso, deveríamos dar condições para que o SNS fosse, de facto, atrativo. Nesse sentido, reforço a ideia de que a aposta tem de ser feita nos recursos humanos. A aposta fundamental tem de partir do Ministério da Saúde ou da direção executiva do SNS, e isso não se faz com uma solução mágica. Obviamente que a questão da remuneração, volto a insistir, é essencial. Tem de haver uma remuneração digna para um trabalho exigente e enquanto isso não acontecer, não vai ser possível captar mais colegas para o SNS. Porém, se trabalharmos somente na área da remuneração também não vamos chegar onde poderíamos chegar. Portanto, temos de trabalhar em tudo o resto. A carreira médica é fundamental. Durante muitos anos, foi esta carreira médica que atraía e que retinha os profissionais no SNS. Aliás, estar no SNS significava que tínhamos hipótese de progressão, hipótese de nos ligarmos à área do ensino e da formação pré ou pós-graduada, de fazermos investigação, com tarefas diferenciadas ao longo da nossa vida profissional: tudo isto foi-se esbatendo ao longo dos anos. Além destes pontos, vemos que há uma grande rigidez naquilo que são os horários de trabalho, naquilo que é o funcionamento das Unidades, o que acaba por prejudicar o trabalho individual e da equipa. Esta realidade no seu conjunto faz com que não seja atrativo permanecer no SNS, pelo menos do ponto de vista de muitos colegas. Nesse sentido, é difícil dizer por onde começar. Eu apontaria claramente a remuneração e as carreiras, e, no caso dos CSP, investir naquilo que seria uma reforma da atual reforma dos CSP, que já há tanto tempo que se fala, mas que tinha de abranger estes dois pontos, de modo a voltar a ser apetecível para colegas como já foi, pelo menos, no seu início. JM | Outro ponto focado pelos profissionais é a necessidade de rever um sistema de indicadores e a adequada simplificação. Havendo a opinião de que devem ser incluídos apenas indicadores que estejam o mais associados possível aos outcomes nos utentes e que as decisões devem ser associadas, não só na evidência, mas também nas características da população. Como comenta? NJ | É evidente que é preciso haver uma evolução dos indicadores. Os indicadores foram muito importantes, pois, representaram uma revolução naquilo que era a prestação de cuidados de saúde em Portugal e é compreensível que se tenha começado por indicadores simples, de processo. Este tipo de indicadores têm que existir e devem existir, estando a correr de forma contínua - talvez não sob a nossa atenção permanente, mas devem estar a ser medidos como base da nossa atividade (número de consultas que são realizadas, periodicidade com que são realizadas, registos e nas codificações que são feitas) e isso sustenta todo o sistema. Agora, temos de evoluir para algo um bocadinho melhor, em que já consigamos introduzir estes outcomes, estes resultados que traduzem valor e ganhos em saúde. É necessário que exista um balanço adequado entre estes os indicadores de processo e os tais indicadores que traduzem ganhos e valor em saúde, devendo todos eles serem construídos, não de forma arbitrária, mas baseados na evidência, tendo em conta as características da população. Não é igual ser um utente ou ser médico em Bragança, em Évora, Lisboa ou Porto. Cada região tem as suas especificidades e isso tem de ser tido em conta também no balanceamento e na ponderação de todas estas metas e de todos esses indicadores. Se nos fixarmos apenas em números, resultados, percentis e acharmos que todos temos que estar no melhor percentil de cada indicador, vamos voltar a algo que existiu muito e que, se calhar ainda existe, que é o foco quase exclusivo das equipas nos indicadores, esquecendo tudo o resto. Tal não faz sentido, pois não tratamos indicadores, tratamos as pessoas. Os indicadores ajudam-nos a tratar melhor as pessoas, mas não podem ser o alvo do nosso trabalho. Já vamos em mais de 15 anos de experiência, está na altura de fazermos uma evolução mais concreta e mais tangível naquilo que é a nossa monitorização no dia-a-dia. Além disso, é importante também que houvesse nessa questão dos indicadores, uma coisa que nunca houve, pelo menos de uma forma mais sistemática: acompanhamento regular das equipas e realização de auditorias, não no sentido punitivo, mas para perceber o que está bem, o que pode ser melhorado, o que deve ser replicado, o que deve ser corrigido. E, se isso acontecer, certamente teremos um sistema de monitorização e contratualização mais eficiente e que trará maior satisfação aos profissionais e melhores cuidados aos utentes. JM | Este Encontro contou com a presença de personalidades da MGF internacional, nomeadamente a médica britânica Iona Heath, cuja conferência inaugural manifestou a sua opinião de que se está a perder a humanização do processo de tratamento, apontando dedo crítico a uma prática assistencial num conceito médico industrial. O que recolhe deste ponto de vista? NJ | Penso que há uma concordância geral com este ponto de vista da doutora Iona Heath. Ou seja, estamos cada vez mais a olhar para o trabalho do médico como uma linha de produção no qual, só interessam números, quantidades, resultados, onde temos pouca preocupação com aquilo que é o doente: é o doente que deve estar no centro de tudo isto e acabamos por não estarmos preocupados com isso. O que se procura saber é se há registos, quantas consultas foram feitas num determinado dia, se o horário das consultas é aquele que alguém definiu. Esquecemos que os médicos e os doentes, que estão frente a frente, são pessoas, que a nossa especialidade vive muito da relação médico-doente e que muitas vezes não é compatível com esta visão puramente matemática. A Dr.ª Iona abordou o papel do médico enquanto pessoa, sem ser um mero instrumento para atingir um determinado objetivo. Precisamos de tempo para termos a capacidade de conhecer aquele doente que temos à nossa frente, para o ouvir e para estabelecer o melhor plano terapêutico. Deveria ser feita uma grande reflexão, não só em Portugal mas em todo o mundo, a propósito de estamos a perder este primado da Medicina e do médico, que é a empatia, a relação, a capacidade de criar um meio de comunicação eficaz e viável entre duas pessoas que têm um objetivo em comum que é o de melhorar o estado de saúde de quem consulta um médico. Efetivamente, tal não funciona se olharmos apenas para os médicos como trabalhadores numa linha de produção. JM | O presidente da WONCA Europa também se deslocou ao encontro da AMPGF numa antecipação do que é esperado da conferência mundial de 2025 que se vai realizar em Lisboa. De que forma a APMGF vai estar envolvida neste grande evento? NJ | O envolvimento da APMGF é total. Este evento resulta de uma candidatura conjunta da WONCA Europa com a APMGF para fazer a conferência mundial em Lisboa e, portanto, vamos estar profundamente envolvidos em tudo o que são questões ligadas ao programa científico, à definição dos temas, à escolha dos palestrantes, à organização do evento em si. Será indubitavelmente um evento APMGF em parceria com a WONCA Europa, o que muito nos orgulha e será algo na linha daquilo que fizemos em 2014, na Conferência Europeia da WONCA, que ainda hoje é lembrada como uma das grandes conferências na área da MGF. Certamente que será um excelente momento para mostrarmos aquilo que de bom por aqui fazemos e mostrarmos ao mundo tudo isso, partilhando as nossas dificuldades e aprendendo também com quem vem de fora, conhecendo outras soluções e outras formas de ver estes problemas que, eventualmente, podem ser transpostas para o nosso país. Importará também perceber de que forma é que podemos influenciar a MGF a nível europeu e mundial. Sabemos que em muitos locais do mundo ainda há um percurso muito grande a fazer pelos CSP, pela MGF, e estes eventos servem também para isso, para ajudar a crescer a especialidade e para ajudar a transpor esta ideia que é defendida pela OMS, em que a garantia de uma cobertura universal da saúde assenta em CSP fortes e, em Portugal, isso assenta na Medicina Geral e Familiar. JM | Neste congresso voltou a renovar-se o apoio da APMGF à investigação em vários momentos, nomeadamente na iniciativa “Vende-nos o teu projeto” e a parceria AICIB. O que podem os investigadores e especialistas esperar destes vossos estímulos? NJ | Podem esperar uma aposta continuada na investigação dos CSP e na MGF, e esta decisão de reativar o Departamento de Investigação e de o fazer de uma forma afirmativa, foi um ponto de honra desta atual direção nacional. Esta parceria com a AICIB também nos orgulha muito e é muito positiva a sua existência. Portanto, seja com este “Vende-nos o teu projeto”, seja com bolsas de investigação que vamos tendo ao longo do ano, tal como já aconteceu em 2022, seja com o próprio apoio à divulgação de estudos e projetos que os associados desenvolvam e que entendam que a APMGF pode ter um papel importante, é uma questão de haver esse contacto com o Departamento de Investigação, e daremos todo o apoio que nos seja possível para estimular esta área, que é essencial e muito esquecida. Em suma, a nossa ideia é produzir investigação de qualidade, resultados válidos e evidência científica robusta. Sabemos que a MGF faz investigação de grande qualidade, precisa é que lhe sejam dadas condições e algum apoio para que essa atividade possa ser desenvolvida. Dentro daquilo que é a nossa função, a APMGF insiste e aposta na investigação pelo que os nossos sócios podem continuar a contar connosco nessa área, esperando que este apoio ajude a massificar a investigação pelas diversas Unidades, pelos diversos colegas e pelos diversos contextos. JM | Que mensagem gostaria de dirigir a todos os que colaboraram neste Encontro? NJ | A mensagem é simples: um grande agradecimento. O Encontro foi muito bem-sucedido. Tivemos mais de mil participantes, o que foi fantástico. Tratou-se de uma grande celebração dos 40 anos e dos 40 encontros. Regressámos a Vilamoura, que é o local onde a maioria deles foram feitos e, portanto, com um grande ambiente, com sessões muito participadas, com um bom equilíbrio entre aquilo que é a parte técnico científica e a parte sócio profissional. Tudo isto levou a que fosse muito agradável estar em Vilamoura durante aqueles quatro dias de Encontro Nacional e, portanto, o agradecimento é para todos, para todos aqueles que estiveram presentes, que confiaram que iam ter um encontro à altura das suas expectativas e acreditamos que conseguimos atingir essa meta. Agradeço, ainda, a todos os que connosco trabalharam, a todos os que foram júris, moderadores, a todos os palestrantes, à comissão organizadora, ao nosso secretariado, ao secretariado da APMGF e a todos aqueles que possibilitaram que este Encontro fosse feito. Não conseguimos fazer isto sozinhos, não é só a Direção Nacional, não é apenas um colega. Foi este trabalho de equipa, que também é apanágio dos médicos de família, que possibilitou ter este resultado muito positivo. Esperamos estar todos de volta já para o 41.º Encontro, no próximo ano - ainda temos mais alguns eventos até lá, mas certamente que o Encontro continuará a crescer e a ser marcante como foi ao longo destes 40 anos.

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