Jornal Médico - Osteoartrose: Contrariar a “resignação”, promovendo o tratamento precoce

A osteoartrose é uma condição altamente debilitante e limitadora da mobilidade da população geriátrica. Frequente a partir da “sétima década”, como contextualiza Hugo Cordeiro, a sua prevalência aumenta com a idade, na medida em que está “associada ao processo de envelhecimento da cartilagem”. Em entrevista ao Jornal Médico, o especialista em Medicina Geral e Familiar, com especialização em Geriatria Clínica e, também membro do Grupo de Estudos de Dor da APMGF, partilha o seu ponto de vista sobre a intervenção do clínico para evitar a cronificação da dor associada à osteoartrose, evitando a subvalorização desta condição. Saiba mais na edição 148 do Jornal Médico. Jornal Médico (JM) | Osteoartrite ou Osteoartrose (OA), é tudo a mesma coisa? Hugo Cordeiro (HC) | Sim, osteoartrite e osteoartrose são dois termos que designam a mesma entidade clínica que se traduz pela degradação progressiva de todos os componentes constituintes da articulação, particularmente da cartilagem articular. JM | Quais são as causas da OA? HC | A osteoartrose pode ser primária/idiopática - associada ao processo de envelhecimento da cartilagem - ou secundária. Como causas secundárias mais frequentes temos a sobrecarga articular crónica, por exemplo, decorrente de alterações do eixo mecânico, as fraturas, consolidações viciosas, infeções, doenças neurológicas, doenças metabólicas como a gota, doenças reumatismais, fatores displásicos (osteonecrose), hemofilia, etc. JM | Quais são as características da dor provocada pela OA, nos seus diferentes estádios? HC | A dor é o sintoma mais comum de osteoartrose. Tem características inicialmente mecânicas, sendo transitória e intermitente, mas com a progressão da doença tende a tornar-se constante e limitativa das atividades de vida diária e da qualidade de vida. A dor, tipicamente, agrava em carga ou com a mobilização e alivia com o descanso, ainda que em estádios mais avançados possa haver dor mesmo em repouso. Geralmente, a dor localiza-se junto à articulação afetada, mas, com a progressão e a postura antálgica que consciente ou inconscientemente o doente adota, podem surgir dores de sobrecarga em outras articulações, contraturas musculares e outras lesões músculo-esqueléticas, generalizando o quadro álgico. JM | A OA é uma doença crónica e degenerativa muito prevalente em Portugal? Quais são as articulações mais afetadas? HC | A OA é doença humana mais frequente. Segundo dados nacionais e da OMS, em Portugal, a osteoartrose do joelho é a mais prevalente, com prevalências importantes também de osteoartrose da anca e da mão. Cerca de 24% da população portuguesa terá osteoartrose diagnosticada de, pelo menos, uma destas articulações, sendo que a prevalência de alterações imagiológicas é muito superior aos quadros sintomáticos diagnosticados. JM | Qual o impacto da OA na funcionalidade e na qualidade de vida dos doentes? HC | A OA está associada a morbimortalidade muito significativa. No geral, a doença causa perda de qualidade de vida, diminuição da funcionalidade e da autonomia, incapacidade precoce para o trabalho, com repercussões a múltiplos níveis e dimensões, inclusivamente em termos de saúde mental. Com efeito, cerca de 1/3 da população com mais de 45 anos e OA sofre de depressão e ansiedade e os doentes com OA apresentam mais predisposição para depressão por incapacidade, fadiga, dor, isolamento social e, inclusivamente, ideação suicida. Por mecanismos não totalmente esclarecidos, a OA parece inclusivamente aumentar o risco cardiovascular, com maiores prevalências de doença coronária e enfarte do miocárdio nesta população. JM | Na população geriátrica esta é uma doença comum? HC | A prevalência de OA aumenta com a idade, pelo que é extremamente prevalente entre a população geriátrica; é pouco comum antes da 5. década de vida e muito frequente a partir da sétima década, sendo que a artrose nos membros inferiores é a causa mais comum de limitação de marcha nos idosos. JM | Sendo tão frequente, existem dados que permitam quantificar o impacto económico da OA? HC | A OA está associada a incapacidade precoce para o trabalho, absentismo laboral, reforma antecipada, perda de produtividade, consumo aumentado de serviços de saúde e medicação. Os dados concretos mais facilmente disponíveis são dos EUA, onde que se estima que o custo global (direto e indireto) relacionado com OA seja de 136,8 biliões de dólares/ano, com custos que superam os relacionados com doenças oncológicas e diabetes. Em Portugal, um estudo de Pedro Aires et al corrobora a associação entre OA, absentismo laboral e reforma antecipada. JM | Considera que uma tão elevada prevalência, aliada à conformidade da convivência com a dor, podem levar a que a OA esteja subvalorizada – quer pelo clínico, quer pelo doente – e até subdiagnosticada? Neste contexto, que papel desempenha uma efetiva comunicação médico -doente, em particular, pela posição que ocupa na rede de cuidados de saúde, por parte do médico de família? HC | Sem dúvida. A inércia terapêutica do médico aliada à resignação e adaptação do doente que, por vezes, mesmo inconscientemente, se diminui nas suas funções e na sua atividade, perpetuam quadros não controlados de dor e OA. A postura e recetividade do clínico na consulta, a sua própria atualização científica, a ligação que consegue ou não criar com o seu para abordar o problema e entenda que é crónico e tendencialmente progressivo, mas que existem possibilidades de tratamento. O papel do médico de família é múltiplo. Desde logo, com forte aposta na prevenção: educação para a saúde desde fases precoces da vida, correção de comportamentos e estilos de vida desadequados e potencialmente lesivos, incentivo à prática de exercício físico, alimentação saudável, manutenção de um peso saudável e diagnóstico, encaminhamento e tratamento precoce de potenciais causas secundárias corrigíveis de OA; e depois no tratamento, com controlo precoce da dor por meios farmacológicos e não farmacológicos, ajudas técnicas e referenciação multidisciplinar, no sentido de evitar a cronificação e complexificação da dor e manter a funcionalidade e qualidade de vida dos doentes. JM | Nos quadros de OA, os medicamentos anti-inflamatórios podem ser usados para tirar a dor. É somente essa a sua função, ou podem ter alguma intervenção na progressão da doença? HC | Os anti-inflamatórios têm o seu lugar no tratamento sintomático, preferencialmente na menor dose eficaz pelo menor tempo possível, devendo ser evitados em pessoas com risco cardiovascular aumentado, antecedentes dispépticos não tratados, discrasias sanguíneas, entre outros. Visam a melhoria a curto prazo do quadro álgico, sendo que geralmente beneficiam de serem adjuvados por outros analgésicos e medidas não farmacológicas, mas não alteram a progressão da doença. JM | Existem outros tratamentos farmacológicos que possamos usar para controlar a dor e/ou a progressão da doença? HC | Não existem, à data, fármacos eficazes para evitar a progressão natural da doença, daí que o objetivo seja reduzir a dor e a inflamação articular. É importante que o doente perceba que os tratamentos farmacológicos, sendo importantes, devem ser enquadrados num plano mais global de tratamento, com forte ênfase em medidas não farmacológicas, e que qualquer plano de tratamento que incida (quase) exclusivamente em fármacos, provavelmente terá uma eficácia insatisfatória. Em situações de dor aguda moderada a intensa com forte impacto na funcionalidade e qualidade de vida, refratária a medidas não farmacológicas, analgésicos simples e anti-inflamatórios, poderá haver lugar ao uso de opioides, na menor dose eficaz e com monitorização regular, adaptados caso a caso ao doente em causa. O tratamento farmacológico da dor crónica da OA, para ser mais eficaz, deve ser multimodal e ajustado de forma regular. Alguns quadros poderão beneficiar de intervenção cirúrgica. JM | Além dos tratamentos mencionados, que outros cuidados podem ser tomados para que a OA tenha uma progressão mais lenta? HC | O tratamento não farmacológico é fundamental nos resultados a médio e longo prazo. São exemplos de intervenções eficazes: a redução de peso nas situações de peso excessivo, para menor sobrecarga das articulações de carga, repouso ade adequado, mas não prolongado, já que este pode ser contraproducente e ser causa de atrofia muscular e diminuição da amplitude articular. A prática de exercício físico adaptado fortalece os músculos peri-articulares, aumenta a amplitude de movimento e leva à produção de substâncias indutoras de bem-estar, contribuindo para o alívio da dor e a diminuição da inflamação e melhoria de quadros ansioso-depressivos. O uso de ortóteses pode ter o seu lugar em situações de desvio articular estrutural. O uso de ajudas técnicas que permitam compensar défices de função de membros contribuem para a preservação e o ganho de função e autonomia e, por fim, a própria educação e conhecimento do doente quanto ao seu corpo, adequação de vestuário, calçado e postura podem contribuir para uma progressão mais lenta, melhoria da dor e da funcionalidade. JM | Quais os desafios de tratar os sintomas da OA na população geriátrica? HC | Os desafios de tratamento de OA na população geriátrica prendem-se, primeiro, com quadros avançados de OA, forçosamente muito mais difíceis de tratar do que quadros mais precoces. Em termos de tratamento farmacológico, é maior o risco de efeitos secundários da medicação, com dano iatrogénico direto ou indireto por descompensação de comorbilidades de base. Outros riscos prendem-se com interações farmacológicas em doentes polimedicados, dificuldades na adesão, autogestão e correta toma dos fármacos. Frequentemente, em Portugal, a baixa literacia para a saúde, a pouca disponibilidade financeira e a solidão de faixas etárias mais avançadas comprometem a construção de planos multidisciplinares e multimodais e a adesão a tratamentos não farmacológicos e restringem o doente ao seu domicílio, também este, muitas vezes, com múltiplas barreiras arquitetónicas, ficando comprometida a eficácia do tratamento.

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