Jornal Médico - Proximidade e distância

Era um mi&uacute;do de 10 ou 11 anos e vivia num sub&uacute;rbio de Lisboa. Filho &uacute;nico, uma vez por outra ainda fazia recados &agrave; m&atilde;e. Poucos, sendo macho, espigado, quase p&uacute;bere, com a voz a querer mudar e o bu&ccedil;o a despontar, chamemos-lhe Francisco. Os pais viviam numa casa de pedra e cal, constru&ccedil;&atilde;o robusta e perdur&aacute;vel, hipoteca e tudo Era um mi&uacute;do de 10 ou 11 anos e vivia num sub&uacute;rbio de Lisboa. Filho &uacute;nico, uma vez por outra ainda fazia recados &agrave; m&atilde;e. Poucos, sendo macho, espigado, quase p&uacute;bere, com a voz a querer mudar e o bu&ccedil;o a despontar, chamemos-lhe Francisco. Os pais viviam numa casa de pedra e cal, constru&ccedil;&atilde;o robusta e perdur&aacute;vel, hipoteca e tudo. Do outro lado da rua das traseiras havia ent&atilde;o um descampado, &agrave; beira da linha de comboio, onde existia uma casa de paredes inst&aacute;veis e constru&ccedil;&atilde;o fr&aacute;gil e ef&eacute;mera, a que nessa &eacute;poca distante se chamava barraca, e onde habitava uma fam&iacute;lia cigana. Tendo granjeado a simpatia da sua m&atilde;e, em dada altura ela decidiu embrulhar uma s&eacute;rie de artigos dom&eacute;sticos que o Francisco n&atilde;o soube, n&atilde;o era assunto seu, e oferec&ecirc;-los &agrave; cigana, uma mulher de ar digno e formas opulentas, com uns magn&iacute;ficos olhos verdes que j&aacute; por v&aacute;rias vezes tinham impressionado a sua influenci&aacute;vel mente pr&eacute;-p&uacute;bere, feita de corpo e afecto, raz&atilde;o pouca ou nenhuma. Para algum espanto seu, e vaga alegria, a m&atilde;e resolveu, em lugar de ir ela pr&oacute;pria, mand&aacute;-lo a ele fazer esse raro recado. De embrulho na m&atilde;o, quando se preparava para obedecer, a m&atilde;e do Francisco chamou-o outra vez para dentro e disse-lhe em tom grave e voz baixa, timidamente, como se lhe estivesse a dizer um segredo ou a confessar um delito: &ldquo;mas v&ecirc; l&aacute; n&atilde;o a trates por senhora&rdquo;. Esta hist&oacute;ria assim banal, coloquial, fez-me pensar numa d&uacute;vida que &agrave;s vezes me assalta qual bandido em encruzilhada, nomeadamente se &eacute; de bom gosto, tanto est&eacute;tico como &eacute;tico, o m&eacute;dico falar da sua vida pessoal na consulta, at&eacute; porque n&atilde;o h&aacute; outra vida sem ser a pessoal, alguns dizem que o m&eacute;dico deve usar mais as orelhas do que a boca, e a pessoa em quest&atilde;o deve ser o doente e n&atilde;o o m&eacute;dico. Por&eacute;m agora registe-se apenas que tal como muitas outras pessoas com vidas pessoais muito diferentes, o Francisco da hist&oacute;ria aprendeu a manter dist&acirc;ncias de seguran&ccedil;a. Diferentes para classes, culturas e pessoas diferentes (cada pessoa &eacute; uma cultura). Por exemplo se a mulher n&atilde;o fosse t&atilde;o atraente a norma da m&atilde;e seria igual? Ou se fosse um homem? Se n&atilde;o fosse cigana? Se n&atilde;o morasse numa barraca? Seja como for, ao Francisco a norma pareceu absurda, na rigidez da sua consci&ecirc;ncia infantil. Por exemplo, a ideia era provavelmente, pensava ele, aumentar a dist&acirc;ncia e n&atilde;o reduzi-la, se n&atilde;o a tratasse por senhora era pouco sensato tratar por voc&ecirc;, e menos ainda por tu, uma mulher que tinha idade para ser sua m&atilde;e. Por outro lado, a norma entrava em conflito com outro preceito da educa&ccedil;&atilde;o que aquela mesma m&atilde;e lhe tinha dado &ndash; o de tratar por senhora uma mulher com marido e filhos, o que era manifestamente o caso da cigana. A recomenda&ccedil;&atilde;o da m&atilde;e era portanto uma tremenda injusti&ccedil;a, ainda para mais dif&iacute;cil de cumprir como tudo &ndash; a l&iacute;ngua portuguesa tem degraus, com acordo ou sem acordo. Tinha uma alternativa, um pouco d&eacute;bil e timorata: n&atilde;o a tratar de maneira nenhuma, nunca se p&ocirc;r em posi&ccedil;&atilde;o verbal de se dirigir a ela directamente. Com a sua flexibilidade, &eacute; um recurso que a l&iacute;ngua portuguesa permite, por&eacute;m logo lhe pareceu indigno de um cavalheiro e uma inqualific&aacute;vel cobardia &ndash; o superego de um mi&uacute;do de 11 anos &eacute; um carrasco. Do alto do seu brio antepubert&aacute;rio, ele queria dirigir-se a ela directa e pessoalmente, perigosamente. Claro que teria preferido poder trat&aacute;-la por tu com carinho, mas isso j&aacute; n&atilde;o tinha nada a ver com o recado da m&atilde;e e com a sua enigm&aacute;tica instru&ccedil;&atilde;o. &Eacute; claro que acabou por trat&aacute;-la por senhora com toda a coragem dos seus 11 anos, e teve a felicidade de ver a oferta ser aceite &ndash; afinal de contas, com toda a sua dignidade, a cigana precisava mesmo de ajuda e granjear a simpatia daquela senhora n&atilde;o era assim t&atilde;o f&aacute;cil, simpatia escassa em cora&ccedil;&atilde;o ressequido. No fundo de si pr&oacute;prio, sobrou a esperan&ccedil;a de que talvez aquela mulher tivesse gostado um bocadinho do mensageiro, para al&eacute;m do que continha o embrulho. Mais, sem querer abusar da pros&aacute;pia: que talvez ela tenha aceite a encomenda por virtude dele, nem que fosse poucochinho. Hoje adulto, o Francisco gosta de pensar que talvez a m&atilde;e tivesse pressentido isso. O lado realista do Francisco, e eu pr&oacute;prio, pensamos contudo que, na circunst&acirc;ncia descrita, houve um princ&iacute;pio moral impl&iacute;cito que permitiu a comunica&ccedil;&atilde;o entre as duas mulheres, a &ldquo;senhora&rdquo; e a &ldquo;cigana&rdquo;: n&atilde;o se pode recusar a oferta de uma crian&ccedil;a. Ent&atilde;o como hoje, comunicar foi p&ocirc;r em comum. A uma dist&acirc;ncia confort&aacute;vel.

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