Jornal Médico - Rui Baptista: Tratamento do doente com insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida

Leia o artigo de opinião da autoria de Rui Baptista, diretor do Serviço de Cardiologia de Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga, a propósito dos pilares terapêuticos e os algoritmos de sequenciação da terapêutica na insuficiência cardíaca. Este artigo surge a propósito do mês do coração, assinalado em maio. Saiba mais na edição 142 do Jornal Médico. A insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida (ICFER) mantém-se como um enorme problema de saúde a nível nacional e mundial. Na instituição onde trabalho, mais de 2500 doentes foram internados com o diagnóstico de insuficiência cardíaca em 2022 e destes, 24% foram readmitidos nos 365 dias subsequentes à alta. Assim, e apesar de nos últimos 30 anos terem ocorrido avanços extraordinários quer no diagnóstico quer no tratamento da ICFER, ainda temos um longo caminho a percorrer de forma a mitigar os efeitos desta síndrome no prognóstico dos nossos doentes. Complementando um diagnóstico sindromático e etiológico preciso e cuidado, a base do tratamento da ICFER radica na otimização da terapêutica médica recomendada nas guidelines científicas. Tal tratamento, e por ordem cronológica de desenvolvimento, inclui o uso de beta-bloqueadores, antagonistas dos recetores de mineralocorticóides (ARMs), antagonistas do recetor da angiotensina/inibidores da neprilisina (ARNI) e inibidores da do cotransportador de sódio e glicose-2 (iSGLT2). Estes fármacos têm consistentemente demonstrado a sua eficácia na redução da morbi-mortalidade e o seu uso deve ser maximizado em todos os doentes elegíveis. Destaco as últimas duas classes de medicamentos, que revolucionaram o tratamento da ICFER nos últimos anos. Em primeiro lugar, o sacubitril/valsartan que, ao inibir a neprilisina, endopeptidase neutra que degrada os peptídeos natriuréticos, aumenta os níveis desses peptídeos, resultando em efeitos natriuréticos e vasodilatadores relevantes, associados a melhoria prognóstica clara. Em segundo lugar, os iSGLT2 têm mostrado benefícios evidentes muito para além do controle glicêmico, tendo demonstrado reduzir o risco de morte cardiovascular, hospitalização por insuficiência cardíaca e eventos renais nos doentes com ICFER, além de reduzir a necessidade de diuréticos nesta população. Apesar de em ambiente de registo ou ensaio clínico, onde por protocolo a titulação dos fármacos é forçada e os objetivos são atingidos na maioria dos doentes, a verdade é que na vida real os resultados obtidos estão muito longe do ideal. No entanto, o contexto de cuidados onde o doente se encontra é muito provavelmente o maior determinante da introdução e titulação dos fármacos, muito mais do que a sua tolerância aos mesmos. A capacidade de integrar os doentes em estruturas como clínicas de insuficiência cardíaca, onde seja possível aplicar os protocolos de titulação amplamente difundidos, faz toda a diferença a este respeito. Perante todos estes recursos farmacológicos, surgem dúvidas relativamente à melhor ordem de introdução dos mesmos em doentes com ICFER, isto é, se deve ser seguida uma ordem histórica, de acordo com o momento cronológico em que os fármacos foram desenvolvidos, ou se pelo contrário deveremos dar primazia às características farmacológicas dos mesmos, que aliadas às características clínicas do doente candidato, poderão determinar sequenciações mais eficazes e seguras. No entanto, saliento que mais do que a sequência exata pela qual se introduzem os fármacos ou as próprias características do doente, é a logística do sistema onde o doente se encontra que determina se ao fim de 4 semanas, a terapêutica médica otimizada se encontra introduzida e devidamente titulada. O recente estudo STRONG-HF veio mais uma vez demonstrar a exequibilidade e segurança de um programa de titulação forçada dos pilares terapêuticos (apesar de uma população mais jovem do que aquela que habitualmente tratamos) e várias análises têm sugerido que poderá haver sequenciações mais adequadas que outras. Outras propostas recentes sugerem a estratificação dos doentes mais idosos com base em scores, como TRST, que incluindo fatores como o défice cognitivo, o internamento recente, o risco de queda/marcha instável, a polifarmácia e a dependência, identificam doentes que devem seguir esquemas de titulação menos intensivos, mas na verdade, não menos ambiciosos no tocante ao objetivo de atingir as doses máximas. Do ponto de vista prático, existem sugestões no sentido de privilegiar a introdução inicial de fármacos com ação vasodilatatória e diurética (iSGLT2 e ARNI) em doentes mais congestivos, enquanto nos doentes que não estão congestivos o início de beta-bloqueadores com antagonistas dos receptores de mineralocorticóides poderá ser uma opção adequada. Naturalmente que estas considerações se aplicam às primeiras 2 a 4 semanas de terapêutica, dado que ao fim de um mês todos os fármacos devem estar “a bordo” do nosso doente, e, portanto, na realidade o foco deve estar na introdução de todos os pilares terapêuticos o mais rapidamente possível. É igualmente importante recordar que alguns doentes não vão conseguir tolerar alguns dos fármacos ou chegar a doses elevadas dos mesmos. Perante sinais de progressão de doença, faz todo o sentido adicionar fármacos que poderão modelar o prognóstico nestes doentes, como o vericiguat, um estimulador da guanilato ciclase que potencia os efeitos da via do NO, ou em casos específicos, a bem conhecida digoxina. Por outro lado, o controlo de todas as comorbilidades, nomeadamente a deficiência em ferro, a sarcopénia, a doença pulmonar obstrutiva crónica, a depressão ou as doenças tiroideas, pode ter um impacto na qualidade de vida e prognóstico muito relevante em doentes muito debilitados como são muitas vezes os doentes com ICFER. Em suma, os enormes desenvolvimentos na terapêutica farmacológica têm permitido revolucionar o prognóstico dos doentes com ICFER, associando-se a reduções relativas de mortalidade que se aproximam dos 70% face a controlos históricos. Perante estas extraordinárias ferramentas, cabe-nos otimizar as condições logísticas do sistema onde nos integramos, com vista a fazer chegar a todos os doentes com indicação destas intervenções eficazes e seguras que revolucionam o prognóstico dos nossos doentes.

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