Jornal Médico - 2023: diário de um médico de Saúde Pública

Leia o artigo de opinião de Lúcio Meneses de Almeida, médico assistente graduado de Saúde Pública e presidente do Conselho Nacional de Ecologia e Promoção da Saúde da Ordem dos Médicos, sobre uma retrospetiva do ano de 2023 em Saúde Pública. À data em que escrevo estas linhas, encontramo-nos a pouco de 2024. O ano que agora finda tem sido muito vivido e, simultaneamente, muito sofrido - não só do ponto de vista nacional, mas também internacional e global. Ao conflito regional que prevalece na Ucrânia desde fevereiro de 2022, sobreveio, em outubro do presente ano, um novo conflito – desta feita, na Palestina. Se o primeiro foi motivado pelo expansionismo neossoviético, o último teve como fator precipitante o ataque terrorista a Israel. Ninguém pode ficar indiferente perante a barbárie terrorista do Hamas; mas também não podemos ignorar a destruição que se lhe seguiu na faixa de Gaza. Se é certo que o terrorismo visa, primariamente, alvos civis, é igualmente verdade que a população civil deve ser salvaguardada em contexto de guerra. Desde logo, pelos combatentes que se escondem cobardemente no seu seio, assim violando as leis da guerra e da própria humanidade. Perante a legítima indignação resultante das baixas civis na faixa de Gaza, não podemos deixar de evocar os últimos anos da 2.ª Guerra Mundial. Fruto de bombardeamentos aéreos, eloquentemente cognominados “tapetes de bombas”, as principais cidades alemãs foram literalmente reduzidas a escombros. Aparentemente, a “culpa coletiva” aplicou-se aos alemães de 1933-45… Quiçá, legitimamente – ou não tivesse havido um apoio massivo, mesmo que não explícito, por parte da população alemã, às políticas genocidas e expansionistas do regime nazi. Entretanto e no nosso País, deu-se a queda do XXIII Governo Constitucional, asfixiado por uma sucessão de escândalos. Quanto ao SNS, a “menina dos olhos” do regime democrático, assistimos à sua desconstrução sistemática. A quase totalidade das medidas empreendidas pela tutela política da Saúde, nos últimos anos, vai no sentido do desmantelamento do SNS. Mas à semelhança das vítimas de violência doméstica, este tem sido brindado, agressão após agressão, com juras de amor eterno... O exemplo mais recente, no que à estratégia desenhada diz respeito, consiste na aventada externalização do Programa Nacional de Vacinação (PNV) às farmácias comunitárias. A efetivar-se, mesmo que relativamente a uma única vacina (Td) e a determinados grupos populacionais, estaremos perante a abertura de uma caixa de Pandora, de consequências irreversíveis. Convirá não esquecer que o PNV, iniciado em 1965, é a joia dos programas de saúde em Portugal. Trata-se de um verdadeiro baluarte da proteção da saúde da população portuguesa, reconhecido a nível internacional. Por sua vez, a procura de serviços de urgência tornou-se uma tragicomédia diária, ao jeito da Guerra do Solnado. Como na referida guerra, estes serviços passaram a funcionar em determinados dias e horas, sendo os interessados diligentemente informados pela vendedora de castanhas colocada à porta… A uma carga fiscal máxima, correspondem serviços públicos mínimos. A situação é tanto mais dramática quanto a maioria da população está a sofrer os efeitos de uma crise económica sem fim à vista. Perante tal retrato, a esperança é a última a morrer. Ou não fosse a vida comandada pelo sonho, no dizer de António Gedeão. A esperança constrói-se com pequenos passos, alicerçados num percurso solidamente traçado. O acordo subscrito pelo Sindicato Independente dos Médicos (SIM), finalmente obtido ao fim de meses de empastelamento negocial por parte do Governo, é auspicioso para o SNS. Estancar a hemorragia de médicos do SNS assenta na qualificação das suas condições laborais e remuneratórias. Sendo auspicioso para o SNS, porque valorizador da sua “coluna vertebral” (a carreira médica), o acordo porfiadamente alcançado pelo SIM é-o ainda mais para os portugueses. Não obstante o exposto, só muito dificilmente o SNS voltará ao fulgor de outros tempos. É que, infelizmente, o seu ponto de não retorno funcional já foi ultrapassado… Mas porque o sonho comanda a vida, formulo votos de um mundo melhor, de um País mais desenvolvido e de uma sociedade mais solidária. E que o SNS consiga sobreviver, a bem da saúde dos portugueses. Votos de um feliz 2024!

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