Jornal Médico - Fixação de médicos, modelos de financiamento e valor em Saúde

"Terminamos 2023 com um tremendo braço de ferro entre médicos e governo em torno de uma atualização remuneratória que tem tanto de tardia como insuficiente para repor a normalidade – e capacidade - do Serviço Nacional de Saúde (SNS)." Palavras de Gil Correia, membro da Direção da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar. Leia o artigo de opinião. Terminamos 2023 com um tremendo braço de ferro entre médicos e governo em torno de uma atualização remuneratória que tem tanto de tardia como insuficiente para repor a normalidade – e capacidade - do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Os médicos lutam por um Serviço que proporcione condições de trabalho dignas para garantir Cuidados de Saúde permanentes, acessíveis e de qualidade ao longo da vida a toda a população. Do lado do governo há a intenção de conter custos globais na Saúde, e em particular com o preço do trabalho médico. Se aparentemente estamos a discutir temáticas diversas, na realidade só uma intervenção abrangente pode surtir efeito nas várias dimensões. Importa, então, olhar para o Sistema de Saúde e compreender que volume e tipo de cuidados irão ser prestados pelas diferentes estruturas e tão importante, como irão ser financiados. A compreensão do financiamento do Sistema é fulcral para entender o seu funcionamento. Hoje é dado adquirido que o Estado tem responsabilidade sobre a saúde da população, mas apenas em 1971 uma Lei do Ministério consagra o direito à saúde. Com esta, a responsabilidade primária do pagamento dos cuidados de saúde passa do indivíduo para o Estado o que possibilita a criação do SNS na década seguinte, formalizado em 1979. O SNS vem agregar, na esfera do Estado, os serviços prestados de forma desintegrada por vários subsistemas e seguros. Esse movimento permitiu uma cobertura de cuidados de saúde a 100% da população (em 1965 apenas 40% da população estava coberta por um seguro-doença) e um natural aumento do volume global de cuidados prestados, refletido no aumento de 2 para 4% do PIB dos gastos públicos em saúde. Por força das circunstâncias económicas, na primeira metade dos anos 80 os gastos públicos em saúde reduzem-se e nessa altura são criadas taxas moderadoras. O modelo de pagamento passa de retrospectivo e prospectivo, com a introdução de orçamentos hospitalares. Porém, a partir de 1986 e até 1990, os aumentos dos gastos são constantes. Na década de 90, assiste-se ao estabelecimento de um Sistema de Saúde misto - financiado pelo orçamento de estado (em 1995 seria responsável por 55% dos gastos totais), seguros profissionais, seguros voluntários e pagamentos diretos (37,4% em 1996). O pagamento hospitalar prospectivo foi definitivamente introduzido tendo por base os Grupos de Diagnóstico Homogéneo (GDH). No entanto, apesar de estudos apontarem para resultados positivos com aumento do número de episódios de internamento, com menor demora média em casos mais complexos, por exemplo, o desempenho não foi o previsto, havendo subsidiação extraordinária para os hospitais mais ineficientes. Em 2002, surge então um novo regime jurídico de contrato-programa que acrescenta o desvio de produção e o acerto de contas. O pagamento aos hospitais é baseado nos serviços, atos e atividades realizadas, previamente negociados em contratos-programa. Ao nível dos Cuidados de Saúde Primários surge o pagamento por desempenho no final dos anos 90, primeiro como modelo experimental e depois estendido com a reforma dos cuidados de saúde primários, em 2005. O pagamento baseado no desempenho (P4P) é revolucionário do panorama da administração pública em Portugal uma vez que introduz um acréscimo remuneratório variável de acordo com o atingimento de objetivos. Este movimento da reforma dos cuidados de saúde primários garantiu uma reconhecida crescente qualidade dos serviços prestados e satisfação dos utentes e profissionais. À semelhança do que é encontrado noutros contextos, a melhoria dos cuidados de saúde não se limita às áreas inicialmente incluídas nos objetivos do P4P. Também aqui, no entanto, a crescente complexidade dos indicadores e das tarefas exigidas aos profissionais, aliadas às limitações de acesso ao modelo remuneratório do “modelo B” e outras circunstâncias conduzem a uma situação de menor satisfação e dificuldade de retenção de médicos no SNS. Os custos totais em saúde têm vindo a crescer de forma generalizada em diversos países e, na verdade, o envelhecimento da população não será suficiente para o explicar. Porém, temos assistido, nos últimos anos, a um movimento contrário ao do nascimento do SNS: aumento dos pagamentos diretos em saúde por parte dos cidadãos, agregação e centralização dos serviços e redução da sua capacidade. Como cidadão compreendo a necessidade de controlar os gastos orçamentais com a saúde, mas importará também ao estado que assume a responsabilidade de garantir o direito à saúde os gastos totais da população com esta. Assim, ao contrário do que sucede num modelo de financiamento exclusivamente pago pelo indivíduo em que o prestador recebe pelo ato (como sucede com prestadores privados), importa ao prestador público estabelecer medidas de eficiência que garantam a melhor utilização dos montantes disponíveis para aplicação na área da saúde. Uma das formas implementadas de controlar esses gastos tem sido nas despesas com o pessoal, particularmente, os médicos. Ao contrário do que sucede na maioria dos outros países, a remuneração dos médicos em Portugal caiu em termos reais, entre 2011 e 2021. Paradoxalmente, neste período, além da Pandemia, assiste-se a um vangloriar do aumento de atos do SNS – mais uma vez foco na produção. Este facto pode explicar que Portugal seja um dos países em que se verifica uma clara desconexão entre a perceção da gestão e dos profissionais de saúde acerca da mão-de-obra e o ritmo de trabalho. Com os primeiros a considerá-la adequada e, no caso dos médicos a classificá-las, maioritariamente, como insuficiente e excessiva, respetivamente. Em contraponto, as escolhas dos médicos mais jovens acompanham o movimento geracional de valorização crescente do equilíbrio entre vida profissional e familiar. Com este panorama, como se espera reter os jovens médicos, tão necessários para o SNS? Como Médico, custa-me pensar que a análise dos Cuidados de Saúde num país se limite a ter em conta a “produção” (número de atos, admissões, dias de internamento...) e se desvincule do estado de saúde da população e da responsabilidade comum por esta. O número de atos realizados nada diz sobre a qualidade dos mesmos, nem sobre a saúde das pessoas. Serei capaz de em 3 consultas de 10 minutos ouvir a pessoa que me consulta da mesma maneira que em 30 minutos consecutivos? Em qual terei “produzido” melhor? A revolução agora em curso tem gerado controvérsia e motivado críticas pela imposição vertical de um modelo assente em Unidades Locais de Saúde (ULS), cujo modelo de financiamento se antevê que assente na capitação. Esta forma de financiamento terá como vantagens privilegiar a integração de cuidados e criação de sinergias, para gerar ganhos de eficiência no processo de tratamento. No entanto, os Cuidados de Saúde Primários, têm um financiamento baseado no desempenho e na autonomia das equipas, e cujos resultados é fundamental que não se percam. Também importa ter em conta a forma de garantir que o plafonamento dos custos não se traduz na “cativação” de cuidados a prestar, na internalização forçada de meios e redução de capacidade de serviços disponíveis, por forma a reduzir os custos. É que estes mecanismos produzem efeitos mais imediatos que as medidas e cuidados de prevenção em saúde. Devem também ser tidos em conta os gastos totais em saúde por forma a proteger a seleção de pacientes. Já em 1983, António Correia de Campos reclamava, na Acta Médica Portuguesa, medidas de racionalização do sistema que melhorem a eficiência e consigam “mais valor para o mesmo dinheiro”. Tal desiderato só é possível se gerar resultados em saúde desejáveis para as pessoas, melhorem a sua qualidade de vida e a satisfação dos profissionais, com custos aceitáveis. Assume-se, no livro ”Um Novo Futuro para a Medicina Geral e Familiar”, da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, a definição de Valor em Saúde de Michael Porter e Elizabeth Teisberg que divide pelos custos totais os resultados em saúde que importam aos pacientes (como recuperação funcional e qualidade de vida). Relevam-se, desta forma, os cuidados prestados centrados no paciente sem descurar os custos totais atingidos para os atingir. Esta avaliação deve considerar todo o sistema, por forma a estabelecer metas e áreas prioritárias de atuação em saúde bem como atuar sobre a procura, controlando o ímpeto de indução de procura e dispersão de cuidados e prestadores para que hoje tendemos e avaliar o Valor em Saúde de cada uma das medidas tomadas Saibamos, pois, estabelecer objetivos, tendo por base o Valor em Saúde, para a população abrangida pelas ULS. Saibamos potenciar e valorizar a relação médico-doente e prestação de cuidados de qualidade como chave fundamental para a saúde das pessoas, qualidade de vida e satisfação destas e dos profissionais que as tratam. REFERÊNCIAS Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar. Um Novo Futuro para a Medicina Geral e Familiar. (2023). Baganha, M. I., Ribeiro, J. de S. & Pires, S. O sector da saúde em Portugal: funcionamento do sistema e caracterização sócio-profissional. (2002). Correia, A. & Campos, D. E. EFICIENCIA E EQUIDADE NO SISTEMA DE SAUDE PORTUGUES. ACTA MEDICA PORTUGUESA vol. 4 (1983). EIT Health, Implementing Value-Based Health Care in Europe: Handbook for Pioneers (Director: Gregory Katz), 2020. FUNDAÇÃO PARA A SAÚDE – SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE. Serviço Nacional de Saúde - Breve interpretação e Linhas para a sua Transformação. 2019.

Terceiro espaço

Mais lidas