Jornal Médico - Contradições e preocupações

Rui Cernadas, especialista em Medicina Geral e Familiar, faz um balanço de 2023 e lança os principais destaques no arranque de 2024, no qual, a "generalização do modelo de USF B, “por decreto”, é a aposta na desvalorização do mérito", refere. A todos os Portugueses e em especial a quantos actuam na área e profissões da Saúde, pública, social ou privadamente, votos de um Bom 2024 pese embora as pesadas nuvens que pairam sobre nós. Fechamos 2023 com boas e más novas. Uma boa nova foi a da publicação dos Estatutos da Direcção Executiva do SNS, em meados de Outubro, com um atraso eventualmente contagiado pela preocupação com a assistência obstétrica nos hospitais e maternidades do SNS… Foi uma gestação difícil e retardada, mas pariu. Uma má nova, para além da queda de um governo de maioria parlamentar absoluta e personalizada, foi a do cenário sem qualificação dos encerramentos constantes e saltitantes das urgências e serviços, do aumento da mortalidade global – e mais preocupante e silenciada – da mortalidade intra-hospitalar. 2024 Arranca e muito mal sob o lema anunciado da “maior reforma do SNS desde sempre”. Mas salvo melhor entendimento sob uma grande contradição e uma preocupação “histórica”. A contradição deriva desde logo do facto de, a ideia das Unidades Locais de Saúde (ULS) configurarem o núcleo da “maior reforma” prometida. O modelo de organização não é nem inédito, nem inócuo. As ULS não são uma novidade, sendo um requentado e embelezado acrónimo que, enganará a opinião pública por uns tempos, mas que sem meios financeiros e estruturais (nomeadamente instalações), sem recursos humanos capazes e sem lideranças reconhecidas, despartidarizadas e conhecedoras em momento algum assegurarão o direito fundamental à saúde dos Portugueses. Trata-se meramente de um sistema de organização e integração de planos de cuidados, a comemorar 25 anos de existência sobre o arranque da primeira experiência (a ULS de Matosinhos) e conhecendo, posterior e titubeantemente, sete outras espalhadas depois de 2007 pelo país mais interior ou menos urbano. Aliás, no seu conjunto as ULS não cobriram mais de um milhão de cidadãos. Os resultados de cada uma, no tocante às várias perspectivas de visão e avaliação, demonstraram à saciedade alguma heterogeneidade e diferenças significativas. Com que base, afinal, o modelo provou o seu sucesso ao ponto de poder assegurar, a partir do modelo organizativo de oferta de cuidados, o êxito antecipado? Ao invés sabemos sim que, estudos como o da Entidade Reguladora da Saúde (em 2015) e o da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (em 2022) foram concludentes quanto à falta de… conclusões gerais e evidências favoráveis. Falta ainda e por outro lado, entender em que medida o alargamento dos Centros de Responsabilidade Integrada, pensados para os hospitais em contexto SNS agora alterado, vai articular e enquadrar-se no sistema ULS. A questão da potenciação das “economias de escala” como li em declarações do Director Executivo do SNS, a par das “melhorias de acesso e diminuição de burocracia” é, em matéria de entendimento louvável. Contudo, o aspecto de escala parece paradoxal quando o SNS com uma Central de Comprar assumia uma escala clarissimamente maior! Sobre o acesso vão abrir-se mais portas? E a burocracia está no modelo organizacional de cuidados? Então e em Portugal, a burocracia é apanágio exclusivo do SNS? Aos Cuidados Primários é avançada a proposta de generalização das USF modelo B. Com o maior respeito é um disparate a e ignorância legitimada sobre o percurso dos últimos 20 a 25 anos dos Cuidados Primários. As USF e o respeito pelo avanço obtido nos indicadores assistenciais não decorreram da mera troca de tabuletas à porta das Unidades. Não foi um exemplo como a Ponte Salazar, em Lisboa, que se passou a chamar Ponte 25 de Abril! Pelo contrário, o modelo USF percorreu um longo trajecto de qualificação dos profissionais, culminou um esforço prolongado de mudança de atitudes e relacionamentos, consubstanciou-se em regulamentação e legislação inovadora, designadamente no que que respeitou à constituição das equipas multi-profissionais, ao seu agrupamento, ao nível de democraticidade interna e corresponsabilidade ou às exigências seguidas para a sua avaliação e dispositivo de monitorização, avaliação e remuneração. A generalização do modelo de USF B, “por decreto”, é a aposta na desvalorização do mérito (seja qual for o sistema de avaliação), do facilitismo, do desrespeito pelos milhares de profissionais e centenas de USF que se empenharam em obter e evidenciar resultados, sejam os que já se encontram no patamar B, sejam os que, como USF modelo A, se sacrificam em busca de uma promoção que garantiria ao SNS uma elevação do patamar de qualidade de prestação de cuidados assistenciais!

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