Jornal Médico - Gestão da dor crónica: será que já se sabe tudo?

No âmbito do 40.º Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), a Grünenthal promoveu um simpósio, acerca da utilização de um medicamento opioide em doentes com dor crónica. Sob a moderação de Nuno Jacinto, presidente da direção da APMGF e coordenador da USF Salus, ACeS Alentejo Central - Évora, a sessão contou, ainda, com as palestras de Raul Marques Pereira, médico de família e coordenador do Grupo de Estudos de Dor da APGMF; e de Hugo Cordeiro, especialista em MGF na Santa Casa da Misericórdia do Porto e também membro do Grupo de Estudos de Dor da APMGF. No simpósio intitulado “Tapentadol na gestão da dor crónica: será que já sabemos tudo?” esteve em foco dados de evidência científica e a partilha de experiências clínicas dos oradores que atestam os benefícios do tapentadol na funcionalidade e qualidade de vida dos doentes com dor crónica. Conforme introduziu Raul Marques Pereira, “a dor crónica afeta um terço dos utentes dos cuidados de saúde primários1 e tem impacto ao nível físico, mental, social e fisiopatológico2,3. Com efeito, a qualidade de vida, avaliada pelo questionário EQ-5D-3L, é mais afetada pela dor crónica (0,403+/-0,229)4 do que pela doença oncológica (entre 0,56 e 0,49)5”. Segundo a definição do coordenador do Grupo de Estudos de Dor da APGMF, “o tapentadol é um analgésico opioide que tem um mecanismo de ação dual e sinérgico: redução dos sinais da via ascendente, por agonismo dos recetores opioides μ (MOR); e potenciação do efeito inibitório da via descendente através da inibição de recaptação da noradrenalina (NRI)6-10”. Citando o Resumo das Características do Medicamento11, Raul Marques Pereira assinalou que “o tapentadol está disponível em Portugal em formulação de libertação prolongada (LP) e está indicado para o controlo da dor crónica intensa em adultos, que apenas pode ser adequadamente controlada com analgésicos opioides”. O duplo mecanismo de ação de tapentadol é mesmo importante na prática clínica? Nas palavras de Hugo Cordeiro, “o duplo mecanismo de ação do tapentadol (MORe NRI) tem umefeito sinérgico, sendo mais eficaz do que cada um dos mecanismos isolados, o que lhe confere eficácia no tratamento da dor nociceptiva (com predomínio da ação MOR), dor neuropática (com predomínio da ação NRI) e dor mista12-16”. Para o médico de família da Santa Casa da Misericórdia do Porto, “este duplo mecanismo de ação também pode reduzir a necessidade de recorrer a outros analgésicos e, eventualmente, pode reduzir a necessidade ou a dose de alguns fármacos adjuvantes e o risco de respetivos efeitos adversos. Por outro lado, quanto menos fármacos o doente tiver de tomar, melhor será a adesão à terapêutica”. Como exemplos mais comuns de dor crónica forte com interferência significativa na funcionalidade que podem ser tratadas com tapentadol, referiu: osteoartrose, neuropatia diabética dolorosa, lombalgia crónica com ou sem componente neuropática e dor oncológica”. Utilização do tapentadol com anticoagulantes No parecer de Raul Marques Pereira, “o uso do tapentadol LP é perfeitamente compatível com a toma de anticoagulantes, já que há pouca interação entre estes fármacos”. Hugo Cordeiro aproveitou para acrescentar que “o tapentadol LP, ao contrário, por exemplo, do paracetamol, não interfere significativamente com inibidores da vitamina K como a varfarina. Isto pode ser explicado pelo facto de o tapentadol ser pouco metabolizado pelas enzimas hepáticas CYP, o que diminui significativamente o seu potencial de interações farmacológicas”. Utilização do Tapentadol em doentes com doença O especialista em MGF da Santa Casa da Misericórdia do Porto lembrou que “o doente paradigmático das consultas de MGF é o doente com elevado risco cardiovascular e nestes doentes, inclusivamente com hipertensão controlada, sabemos que o tapentadol LP não tem contraindicação para ser usado. Há inclusivamente estudos17,18 que mostram que o tapentadol LP não afeta o intervalo QT nem outros parâmetros do eletrocardiograma”. Já Raul Marques Pereira notou, a propósito, que “o tapentadol LP, ao contrário de outros analgésicos que não requerem prescrição médica, oferece segurança no seu uso quando há doença cardiovascular instalada”. Utilização do tapentadol em doentes com compromisso renal No contexto da nossa população, muito envelhecida, em que além do declínio fisiológico da função renal com a idade há por vezes um declínio patológico associado a uma miríade de situações clínicas, Hugo Cordeiro lembrou que é importante garantir que o controlo farmacológico da dor não contribui para a deterioração da função renal. Lembrou que “os anti-inflamatórios são uma classe de fármacos que contribui para a deterioração da função renal, sobretudo quando usados indevidamente, sem prescrição, mesmo que por períodos relativamente curtos, pelo que o seu uso, geralmente, não deve ser prolongado. No doente com insuficiência renal ligeira a moderada, o tapentadol LP não requer ajuste de dose”. Por outro lado, Raul Marques Pereira alertou: “os doentes com insuficiência renal ligeira a moderada são os mais frequentes nas nossas consultas e são seguidos por várias especialidades que, por vezes, se opõem ao uso de analgésicos opioides e interferem nesta terapêutica. Contudo, conforme demonstrado pela prática clínica e pela evidência científica, o tapentadol LP pode ser usado nestes doentes”. Utilização do tapentadol no doente com compromisso hepático Continuando a partilhar a sua experiência clínica, Hugo Cordeiro assegurou que “na doença hepática ligeira não há necessidade de adaptação da posologia do tapentadol LP, mantendo-se a indicação formal para o seu uso a cada 12 horas”. Já no doente com doença hepática moderada, segundo a classificação de Child Pugh de 5 a 9, aconselhou, como boa prática, “adaptar a sua posologia para uma toma diária, sem exceder a dose de 50 mg de tapentadol LP, no início de tratamento, e ir avaliando ao longo do tempo a segurança e tolerabilidade do fármaco”. Quais são os eventos adversos relacionados com a inibição da recaptação da noradrenalina esperados com a utilização do tapentadol? Em discussão sobre a segurança do tapentadol, Raul Marques Pereira salientou que “se um doente começar a ser tratado com a dose mínima, e se esta for titulada gradualmente, não há evidências na literatura e na prática clínica de efeitos adversos relevantes associados ao tapentadol LP”. Hugo Cordeiro interveio para realçar que a percentagem de efeitos adversos associados ao tapentadol, quando corretamente usado, é relativamente baixa e isto comprova-se pela excelente tolerabilidade na prática clínica”. A Utilização do tapentadol melhora a qualidade de vida do doente? Na opinião de Hugo Cordeiro, “é frequente o doente com dor crónica ir-se resignando e conformando com a sua dor, adaptando o seu quotidiano por forma a evitar os fatores desencadeantes ou agravantes da dor”. No entanto, sublinhou, “a prática clínica deve ser orientada no sentido da melhoria da funcionalidade do doente, conseguindo que ele se sinta produtivo no trabalho e nas atividades de lazer e pratique, sem limitações, a maioria das atividades diárias. Neste sentido, a analgesia com tapentadol LP pode ter um papel importante na melhoria da qualidade de vida e funcionalidade do doente”. Evidência na funcionalidade, estado de saúde e qualidade de vida De acordo com o especialista, “vários estudos do desenvolvimento clínico do tapentadol12-15 mostram de forma inequívoca o impacto positivo do tapentadol LP na funcionalidade dos doentes”. Referindo-se, em concreto, ao estudo retrospetivo “Tapentadol prolonged release in patients with chronic low back pain: real-world data from the German Pain eRegistry18”, “foram recolhidos dados de quase 311 mil doentes com lombalgia crónica”. Os resultados mostraram que: › Nos doentes que já estavam previamente medicados com analgésicos do escalão II da OMS (codeína e tramadol), cuja dor ainda não estava completamente controlada e precisavam de analgésicos do escalão III da OMS, como o tapentadol ou oxicodona, a progressão para estes analgésicos melhorou a componente física avaliada pelo questionário SF-12-PCS porque, segundo Hugo Cordeiro, “a dor estaria melhor controlada”. Esta melhoria é mais pronunciada nos doentes que receberam tapentadol LP versus outros fármacos opioides do escalão III da OMS (8,2 versus 4,6); › Por controlo da dor, foi igualmente possível notar uma melhoria na componente mental, avaliada por SF-12-MCS, nos doentes que progrediram de analgésicos do escalão I/II para o escalão III da OMS, sendo esta melhoria mais significativa nos doentes que progrediram para o tapentadol LP versus outros fármacos do escalão III da OMS (2,1 versus 0,8); › Foi evidenciada uma redução muito significativa dos distúrbios do sono relacionados com a dor, avaliada pelo índice de incapacidade da dor modificada (mPDI-6), dos doentes com dor não controlada que progrediram dos analgésicos do escalão I/II da OMS para tapentadol LP. Esta redução foi maior em magnitude versus outros fármacos do escalão III da OMS (23,6 versus 15); › Finalmente, notou-se uma redução média de maior magnitude no número de dias de baixa por doença nos últimos três meses nos doentes que progrediram da terapêutica opioide do escalão I/II, por manterem dor não controlada, para o tapentadol LP versus outros opioides do escalão III da OMS (10,8 dias versus 6,4 dias). Concluindo, ambos os especialistas em MGF destacaram que o tapentadol é um analgésico opioide atípico que combina, sinergicamente, dois mecanismos de ação (agonismo do recetor opioide μ e inibição da recaptação da noradrenalina), e para o qual existem vários ensaios clínicos de eficácia, segurança e tolerabilidade que suportam a sua utilização em doentes com dor crónica intensa disfuncional. Destacaram ainda que o objetivo da gestão do doente com dor crónica deve ir para além da redução da intensidade dor, focando-se na avaliação do impacto funcional não só da dor em si como dos efeitos secundários da medicação usada para a tratar, com o objetivo último de melhorar a qualidade de vida do doente. Este artigo é da exclusiva responsabilidade e iniciativa editorial do Jornal Médico. REFERENCIAS: 1. Antunes F, Pereira RM, Afonso V, Tinoco R. Prevalence and Characteristics of Chronic Pain Among patients in Portuguese Primary Care Units. Pain Ther.2021; 2. Hunter DJ, McDougall JJ, Keefe FJ. The symptoms of OA and the genesis of pain. Rheum Dis Clin North Am.2008; 34(3):623-643; 3. Hunter DJ. Osteoarthritis. Best practice and Research Clinical Rheumatology. 2011; 25:801-814; 4. Antunes F, et al. Management and Quality of life of patients with chronic pain attending primary care units in mainland Portugal: an observational study. Poster presented at ETIC’s congress 2019; 5. 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